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A MENTIRA MIDIÁTICA AMERICANA


Carta Capital - Sociedade
Análise / Roberto Amaral
A GUERRA FRIA POR OUTROS MEIOS
O conflito sobrevive ao fim do império soviético e o
anti-comunismo sobrevive ao comunismo. Ao preço da derrubada de governos
democraticamente eleitos
por Roberto Amaral —
publicado 12/03/2014
“Na medida em que violar a soberania está em causa, a Rússia
deveria salientar que os EUA invadiram o Panamá para prender Noriega, invadiram
Granada para impedir os cidadãos americanos de serem tomados como reféns (mesmo
que eles não tenham sido tomados como reféns), invadiram o Iraque por motivos
espúrios alegando que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa, e
agora matam pessoas em outros países com drones, etc, etc. Em outras
palavras, para os EUA, pregar a um presidente russo sobre o respeito pela
soberania e preservação da integridade territorial pode parecer uma
reivindicação de direitos especiais não permitidos a outros.”
Jack Matlock, ex-embaixador dos EUA em Moscou
O fato objetivo é este: a Guerra Fria sobrevive ao fim do
império soviético e o anti-comunismo sobrevive ao comunismo, ainda que ao preço
da derrubada de governos democraticamente eleitos e do açulamento de
turbas fascistas e neonazistas, e antissemitas – paramilitares e terroristas
– como as que em Kiev depredaram e incendiaram prédios
públicos e, por fim, espalharam o caos em toda a Ucrânia. Ação
preparatória do golpe de Estado imediatamente chancelado por Washington e
Bruxelas, que o apoiaram nas sombras, como apoiam os distúrbios na
Venezuela, país que conta, também ele, com governo democraticamente eleito –
independentemente dos erros e acertos de Maduro.
Há algo novo nas manifestações, que não é apenas a ânsia de
liberdade e democracia.
Um dos mais proeminentes oráculos dos ‘valores do Ocidente’
na conturbada Ucrânia é Oleh Tyahnybok, líder fascista do Partido Svoboda, cujo
discurso conclama os ucranianos a se levantar contra o que chama de ‘máfia
moscovita-judaica’ (já há notícia de sinagoga atacada por coquetéis Molotov),
com quem Victoria Nuland, a secretária de Estado adjunta (dos EUA) para
Assuntos Europeus e da Eurásia se reuniu em meio à crise, em Kiev.
Os EUA parece nada haverem aprendido com o 11 de setembro,
ação conduzida pelas forças que haviam alimentado para se contraporem no
Afeganistão à União Soviética.
Obama não está preocupado com a integridade territorial da
Ucrânia, o ‘Ocidente’ não está chocado com a corrupção escandalosa do governo
Yanukovich, nem Putin está pensando na segurança das minorias russas na
Ucrânia.
Os EUA que desmantelaram a Iugoslávia, fizeram a Guerra dos
Bálcãs e se alimentaram do território mexicano não podem arriscar-se a uma
Guerra contra uma potência atômica simplesmente para defender a soberania de um
território distante habitado por um povo estranho. Nem Putin nem Obama podem
falar em defesa dos princípios do direito internacional. Falta-lhes a
necessária autoridade moral. A Carta da ONU (1945) proíbe a violência nas
relações internacionais, admitindo apenas duas exceções: legítima defesa ou autorização
prévia do Conselho de Segurança. Quem autorizou a invasão, pelos EUA, de
Granada, do Panamá, do Iraque, do Afeganistão? Ou os ataques ao Sudão? De quem
a França recebeu mandato para invadir o Mali? Com o mandato de quem a Rússia
invadiu a Geórgia? Como condenar o separatismo, se o Ocidente promoveu Kosovo
(1999) e se prepara para aplaudir a independência da Escócia e da Catalunha?
As disputas vêm de longe, na lenta aplicação da teoria do
Departamento de Estado segundo a qual, para permanecer como a única
superpotência, os EUA precisam deter o controle da Eurásia, a ponte entre a
União Europeia e o leste da Ásia.
A questão é claramente geopolítica e diz respeito
aos interesses militares dos EUA (e, por via de consequência, da OTAN) de abrir
uma cabeça de ponte na Ásia – a região mais promissora e próspera do século,
onde se acha uma China hiperbólica, potência econômica e militar. Para isso, é
preciso empurrar os russos ainda mais para leste, de quebra
garantindo acesso a corredores de oleodutos e gasoduto, acessando reservas de
petróleo e gás natural.
O parágrafo precedente é simples releitura do que Zbigniew
Brzezinski, assessor de Carter para segurança (1977/1981) escreveu na Foreign
Affairs – uma das mais influentes revistas de política internacional dos
EUA ou seja, do mundo: “Dado o tamanho [da Rússia] e sua diversidade, um
sistema político descentralizado e uma economia de livre mercado seriam a mais
provável via para desencadear o potencial criativo do povo russo e [explorar]
os vastos recursos naturais da Rússia. Uma Rússia vagamente confederada –
composta pela República da Rússia Europeia, uma República da Sibéria, e uma
República do Extremo-Oriente – também tornaria mais fácil cultivar relações
econômicas mais estreitas com seus vizinhos.
Cada uma dessas regiões confederadas seria capaz de explorar
o seu potencial criativo local, sufocado por séculos de controle da pesada mão
burocrática de Moscou. Além disso, a Rússia descentralizada seria
menos suscetível a uma mobilização de tipo imperial.”
(“A geoestratégia para a Eurásia”, 1977).
A tese aí advogada é, portanto, o condicionamento da
política externa do antigo império à geopolítica dos EUA e à estratégia militar
da OTAN.
Aos que desejarem conhecer melhor o projeto imperialista
estadunidense aconselho a leitura de O grande tabuleiro de xadrez: a
primazia americana e seus imperativos geoestratégicos (The Grand
Chessboard: American Primacy and it’s Geostrategic Imperatives, 1998) talvez a
principal obra de Brzezinski. Trata-se de um roteiro de como estabelecer a
hegemonia militar, política e econômica dos EUA – da Eurásia ao Oriente
Médio.
Como se vê, de nada adiantou, para os russos, o
desmantelamento da URSS e a adesão ao capitalismo...
A Rússia que, ao tempo da URSS, tinha
os ‘escudos’ formados pela presença de tropas soviéticas
na Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Bulgária, Romênia, Letônia e
Lituânia, hoje vê esses países na OTAN e se encontra na iminência de ter ao seu
lado uma Ucrânia hostil, Ucrânia que é seu berço cultural e
histórico (uma das primeiras medidas tomadas pelo governo interino foi proibir
o ensino da língua russa, majoritária no país), fechando seu acesso
ao Mar Negro e pondo por terra o sonho da União Euroasiática
(Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Ucrânia e China).
Não é pouco.
A alternativa de Putin é a federalização do leste e do sul
da Ucrânia (pró-Rússia) e sua posterior integração à futura União Euroasiática.
Talvez seja bom reproduzir uma recomendação de Kissinger
descurada pela Casa Branca e ignorada, por ignorância mesmo, pelos
nossos cientistas mediáticos:
“O Ocidente precisa entender que, para a Rússia, a Ucrânia
jamais será apenas um país estrangeiro. A história russa começou na chamada
Kiev-Rus. A religião russa se propagou a partir dali. A Ucrânia fez parte da
Rússia durante séculos e suas histórias já estavam entrelaçadas antes disso.
Algumas das mais importantes batalhas pela liberdade russa,
a começar pela Batalha de Poltava, em 1709, foram travadas em solo ucraniano. A
Frota do Mar Negro, o meio de a Rússia projetar o poder no Mar Mediterrâneo,
está baseada mediante um arrendamento de longo prazo em Sebastopol, na Criméia.
Até mesmo dissidentes famosos, como Alexander Soljenitsyn e Josep Brodsky,
insistiam que a Ucrânia era parte integral da história russa, e, de fato, da
Rússia.”
(Henry Kissinger, “Como resolver a crise ucraniana”. O
Estado de S. Paulo, 7/3/14)
O que está em jogo e, explica a crise, é o intento de
promover o ingresso da Ucrânia na OTAN, candidatura posta
em 2008, na Cúpula da OTAN em Bucareste. Trata-se, portanto, de uma ameaça
concreta. É que, alcançado esse objetivo geoestratégico, Moscou
ficará a menos de 500km (uma Rio-São Paulo) dos mísseis da OTAN. Não podendo
reagir e impedir a ameaça, restaria à Rússia renunciar ao seu papel político na
Eurásia, renunciar à sua própria independência e, por fim, derrotada sem dar um
tiro, ingressar na OTAN... e, assim, finalmente ficar livre de ameaças. A
partir daí, descer do pódio atômico, e preparar-se para sua própria divisão.
Entende-se, pois, a reação de Putin e o apoio que vem recebendo dentro do país.
A História sabe como os EUA reagiram à presença de mísseis soviéticos em Cuba,
e todos podemos antever qual seria sua reação se bases soviéticas
fossem instaladas no Alaska ou em Porto Rico. Ou se no México ou no
Canadá assumissem governos beligerantes.
A História, porém, não é um videogame: os fatos,
muitas vezes, adquirem vida própria e podem se apartar do controle dos
estrategistas. Todo cuidado é pouco com o urso ferido, mas ainda com dentes e
garras atômicas.
Leia mais em www.ramaral.org
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