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O amor e suas Vicissitudes (Andre Green)
O amor e suas Vicissitudes (Andre Green)
Tradução Livre do texto por Marina Miranda e Eliane Souto de Abreu
Psicanalistas,
mesmo com suas experiências da transferência e seu conhecimento sobre sua
própria vida amorosa e de seus pacientes, não podem alegar que o conhecimento
que possuem sobre o amor é maior que o que nasce da cultura (especialmente dos
escritores e poetas). Euripedes, Shakespeare, Racine, Goethe, Stendhal,
Baudelaire, Chekov, Strindberg, Proust todos continuam a ser mestres dos
psicanalistas. Não seria inútil tentar descrever a constelação do amor da
maneira que eles o vêem, mesmo quando encontram dificuldade para delimitar as ideias e fatos observáveis ou
hipóteses sobre a gênese, desenvolvimento, como também a queda e declínio. Em
todo caso, paixão será nosso modelo (Green, 1986).
O
primeiro e, provavelmente, mais forte estado de espírito de um psicanalista
associado às manifestações de amor é o resultado do levantamento da repressão.
Algo parece ter surgido do subsolo, como se tivesse quebrado as cadeias em que
foi preso, e é sentida como uma libertação exaltante. É difícil dizer por que, na maioria das vezes,
o amante já se encontra apaixonado por alguma outra pessoa que será abandonada pelo
novo amado. Isto pode ser por que o amor pelo objeto anterior estava
enfraquecendo sem que o amante tivesse se dado conta. Entretanto, amor a
primeira vista pode ser um evento semelhante a uma revelação para uma mente
quieta. A principal característica do amor é um sentimento de atração
irresistível, vivenciado com exaltação, e um desejo de estar o mais próximo
possível do objeto amado.
Quando
ocorre o apaixonamento o estado normal da mente sofre uma espécie de mutação,
como descrevem todos os escritores. O
caso mais característico é o amor a primeira vista. Porém, ocorre também que o
amor de repente recai sobre o amante após algum tempo – o amado era conhecido,
mas não havia sinais que pudessem tornar
possível visualizar o que estava para acontecer. Tudo é sentido como
inexplicável e reciprocamente racionalizado como totalmente determinado. Os
amantes estão predestinados um ao outro, tendo esperado um longo tempo para
encontrar sua metada (Platão). Uma constante impressão não é só a de que o
encontro é perfeitamente harmonioso, mas que, em retrospectiva, deveria
necessariamente ter acontecido. O casal apaixonado diz estar em uma relação
fusional: dois corpos, uma só carne. O casal é uma nova unidade,
inquebrável. Mesmo quando algum
sentimento ambivalente permanece de um quadro patológico clínico prévio, a nova
ligação é vivenciada como mais forte. Ambivalências podem não ser suprimidas:
são simplesmente colocadas de lado. Para o futuro? Impossível prever. Os
sentimentos de milagre ofuscam os remanescentes da patologia. Por quanto tempo?
Impossível dizer. A partir desse ponto de vista, a simbolização é um derivado
de um relacionamento amoroso (duas metades quebradas que se uniram para formar
um terceiro). Em tudo isto: aparência, impressão e a revelação assumem importante
papel, intensificando o relacionamento mítico. A experiência é sentida como uma
abertura para o outro, e também para o mundo, se não para o universo.
Isto
não é somente fusão, mas imersão no Grande Todo, tanto quanto uma receptividade
para a estimulação em qualquer lugar, até quando, silenciado. O amor não é só
uma abertura dos sentidos, mas a exaltação de uma sensibilidade que a vida tem
a oferecer. Existe um sentimento de ser capaz de compreender novos aspectos da
vida que estavam anteriormente mortos ou invisíveis. Em outras palavras, o amor
é a possibilidade de abertura para um outro, do seu próprio ser para a ordem do
viver e todas as coisas que existem. Pode-se distinguir entre as qualidades que
pertencem ao estado de estar apaixonado, as mudanças na relação com o objeto e
a forma como o objeto é sentido e percebido. Há mais a dizer sobre o objeto. É
quase insuficiente enfatizar sua idealização – e até mesmo falar sobre uma
ampliação (como se os sentimentos que uma criança tem por seus pais fossem
inconscientemente revividos). A principal característica é uma atração
irresistível, separação dolorosa, uma necessidade de colorir qualquer
experiência pelo desejo de tornar o objeto amado cheio e exclusivamente feliz e
protegido de dor e danos. O objeto é sentido como único e insubstituível.
Portanto, pode-se chamar de auto-sacrifício: a ironia é que o objeto de amor
não é creditado a sentimentos semelhantes, como o ciúmes - o monstro de olhos
verdes que zomba da carne que come (Othelo) - é frequentemente associado com o
estar apaixonado.
Podemos
ser atingidos pela medida em que as metáforas orais vêm à mente sob a forma de
fome ou insaciabilidade. (Ela faz com fome, onde mais ela satisfaz) – Antônio e
Cleópatra. Não foi Freud, antes de qualquer outra pessoa, que disse que a
relação com o peito era o protótipo de todos os relacionamentos mais amorosos?
(O Ego e o Id, 1923).
Certamente
notamos a misteriosa ausência, a repressão de todo sentimento negativo. Pode
ser mais fácil de entender o que está em jogo na transformação do ódio em amor
do que do amor em ódio, porque a importância do investimento na primeira fase
(ódio) pode permanecer e persistir sob uma outra forma em seu inverso (amor).
De qualquer forma, em ambos os casos, encontramos o desejo de ser o benfeitor
exclusivo, de possuir, a fim de encarecer, gratificar ou estimar, causar dano
ou destruir. A transformação do amor em ódio é mais misteriosa. Eros se tornou
Eris – na mitologia Grega – Eris personifica a dissidência. É a maçã que foi
dada por Paris para uma das deusas concorrentes para indicar qual era a mais
bonita, que provocou a Guerra de Tróia. Afrodite provocou inimizade nos outros.
Assim, podemos visualizar a vicissitude do amor que nasce do ciúmes. Mais amplamente, é sobre a dissidência que
Freud realmente está escrevendo quando se refere à ação do desligamento das
pulsões destrutivas como manifestação do instinto de morte. Pode-se supor que,
por razões estruturais (narcisismo) o amor é insuportável porque inclui
possibilidade de traição. No final, o objeto de amor não pode ser confiável e
há grande ceticismo sobre se o amante, mais do que o amado, merece receber este
amor.
É
discutível pensar, como Freud, em uma espécie de esgotamento do ego em favor de
uma sobrecatexia do objeto como a única condição possível para o amor, como tem
sido observado que o ego amoroso também pode aparecer enriquecido e exultante,
especialmente se os sentimentos do amante são compartilhados (David, 1971). A
experiência do amor é notável por causa de sua exaltação, que muitas vezes leva
as pessoas que veem o amante expressar seus
sentimentos a pensar que a manifestação dessa paixão, não é razoável. Não há
nada que se possa fazer sobre isso, além de ouvir com compaixão. Mesmo o amor
de transferência, nos seus modos excessivos e compreendidos pelo analista como
uma resistência formidável (incluindo os sentimentos negativos escondidos da
expressão consciente), pode levar à mesma conclusão quando as interpretações
apenas suscitam sentimentos de desamparo no amado, e mal-entendidos no amante.
Frequentemente, o amante parece aos seus amigos, para não mencionar os pais,
estar fazendo papel de bobo. Esta situação, por vezes, se torna uma caricatura
de quando dois analisandos discutem como eles vêem o seu psicanalista.
A atração pelo objeto (bem ao contrário do que se
chama vínculo) pode estar relacionada a um estado geral de excitação de todas
as atividades da unidade que Freud rotulou como Eros, em sua obra. Entretanto, levando
em conta toda atividade pulsional, a unidade igualmente inclui impulsos
inibidos, sublimação etc.
O
papel desempenhado pelos impulsos sexuais, que não foram inibidos, mas apenas
reprimidos ou cindidos é um tópico de discussão principalmente para aqueles que
preferiram outras partes da teoria (os quais nem mesmo mencionam a disfunção) para Freud.
Existe
uma necessidade de ser tão próximo quanto possível, do objeto de amor, para ter
a impressão de que ambas as mentes, do amante e do amado, estão continuamente
em comunicação e, além disso, compreendem um ao outro, mesmo sem a ajuda de
linguagem, através das emoções compartilhadas e intuições, através de
telepatia. A tolerância muito limitada da separação e do sentimento comum de
que os dois amantes se unem de uma forma que não pode ser dissociada de um só
corpo e alma é acompanhada por uma certeza interior irresistível: a de que os
amantes já se conheciam muito antes. Todas estas características jogam em favor
da concepção psicanalítica de que, no amor, os amantes não encontram um ao outro
no objeto de amor, mas reencontram a si mesmo depois de ter si perdido no
passado remoto.
Esta
referência à infância, valorizada por todo psicanalista, também deve ser
preenchida com o argumento oposto: que o amor adulto tem algo novo em que ele
dá à experiência do amor um sentimento de que algo desconhecido está chegando à
vida. A comunhão de dois corpos e almas pode ser entendida em termos
fenomenológicos e psicanalíticos como uma modificação dos limites do ego,
resultando em interpenetrações de seres: a intolerância aguda de separação ou
desentendimento, intensificando e emoção de todos os sentidos, a perda de
limites e a baixa de censura são quase constantes. Mesmo o corpo parece capaz
de ser influenciado e mudado, explicando o papel desempenhado pela poção mágica
em muitas lendas.
No
entanto, o novo afeto, viajando em ambas as direções, é de um tipo singular; Eu
proponho chamar este fenômeno de comunicação primária, que sustenta uma relação
mutuamente hipnótica. Este tipo de comunicação é altamente dependente de uma
troca de cada parceiro em seus processos primários, o que explicaria o
sentimento de ser dois em um - em si uma característica típica dos processos
primários. No entanto, o mais perto que a relação pode ser, no fundo,
encontramos uma necessidade irresistível de possuir completamente o objeto, que
é sentida como único e insubstituível, na forma mais completa possível.
Este
afeto, intimamente ligado ao sentimento de amor, pode ser distorcido,
transformado em ciúmes ou traição, e pode gerar o desejo de ter a certeza de
estar constantemente presente na mente e pessoa do objeto (como se houvesse uma
regressão ao estado de objeto parcial). Na maioria das vezes, é inconsciente,
mas não é sentido como tal: pelo contrário, só se expressa como um modo de abdicação
total para o objeto de amor, esperando uma abdicação simétrica por parte do
objeto. A mania está na vanguarda da experiência amorosa.
Quando
as circunstâncias impõem uma separação, há uma modificação estranha da
experiência de espaço e de tempo, acompanhada de saudade e nostalgia, que
surgem na vivência da alternância de presença e ausência - o primeiro muito
curto e este último muito longo . Existe uma imersão de sentimentos no estado
da ilusão, enquanto o amor dura. É como se o amor tivesse sido inventado para
dar aos seres humanos uma ideia do que seria felicidade, se ela pode ser
permanente, seria esta a sensação!
Em
O sonho de uma noite de verão, Hérmia
lamenta:
HÉRMIA Oh! Que inferno! Escolher o
amor com os olhos alheios!
LISANDRO Ou, se na escolha houvesse
simpatia, a guerra, a morte, a enfermidade viriam assediar essa união,
fazendo-a momentânea como um som, fugaz como uma sombra, breve como qualquer
sonho, rápida como um relâmpago numa noite profunda, que bruscamente ilumina o
Céu e a Terra; antes que um homem tenha tempo de dizer “Olhai!”, as fauces das
trevas o devoram. Tão rápido a evaporar-se é tudo o que brilha!
(O sonho de uma noite de verão, vol.
2 – p.394 – Obras Completas de William Shakespeare)
Fontes,
comunicação e mudanças de amor
É
inegável que as raízes do amor já estão presentes na primeira infância e se
desenvolvem mais tarde, passando por muitas mudanças. Será que devemos
concentrar a nossa compreensão sobre uma melhor definição das primeiras
manifestações de amor e observando suas transformações mais recentes, ou
devemos decidir que, mesmo se estamos conscientes da importância da experiência
infantil, o padrão principal encontra-se na experiência do amor do indivíduo
maduro na idade adulta?
Esta
mudança de ênfase seria em favor de relacionar a experiência infantil de uma
visão retrospectiva que não se limitaria a concentrar-se na relação real da
infância (como observado ou reconstruído), mas iria tentar deduzir suposições
sobre o que já estava lá na infância, sem ser observável. Gostaríamos de ser
confrontados com as expressões mais ou menos latentes e incompletas do amor,
que só floresceria de uma forma mais evidente, mais completa, mais total,
embora não menos misteriosa e de fato mais complexa. Seria menos descritível
dentro dos limites de uma comunicação direta a partir de uma pessoa para outra.
Um
fato importante sobre o amor é que não é comunicável, mesmo quando o objeto de
amor compartilha os mesmos sentimentos e experiências com o amado. Mesmo se
estamos cientes de que o amor muda durante um longo período de tempo, e que
poderíamos refletir sobre as modificações que sofre, um misterioso evento tão
importante como amor à primeira vista é a sua extinção súbita.
Desnecessário
dizer que tem havido muitas controvérsias, e não apenas sobre preconceitos
subjacentes a um Freud mais biológico e suas concepções fechadas que
negligenciam muitos outros fatores (o objeto). Freud não foi desatento, ele
estava bem consciente do caminho que ele escolheu para expressar suas ideias -
intencionalmente e deliberadamente. Se não sabemos o que é amor, podemos pelo
menos confiar nas nossas representações dele.
Em
última análise, a experiência do amor nos ensina que ele está ligado à ilusão -
e é eventualmente capaz de se transformar em uma ilusão. Tem todas as
possibilidades de transformar a percepção do objeto, os efeitos ligados a ela,
e as ações que implicam, alcançando consequências às vezes irreversíveis, a
partir da mais feliz para a mais destrutiva. Embora possa ser confrontado, e
até misturada com ele, o amor não é um resultado na evolução do ódio (como
indicado na literatura kleiniana), é irredutivelmente específico, mesmo que
possa assumir diferentes formas, mais ou menos distantes a partir da descrição
do que é considerado como o seu núcleo. Por vezes, pode estar em estreita
aproximação na sua relação com a separação. O amor é sinônimo de reunião:
separação, portanto, pode parecer insuportável.
O
amor não é um produto da idealização, embora possa desempenhar um papel muito
importante na sua formação. Winnicott compreendeu a importância da ilusão e
desilusão, que são diferentes de idealização. Amor e ódio são, na maioria das
vezes, mistos. Isto pode ser observado quando os resultados do amor são mais
habitualmente emocionais. O ódio, como diz Lacan, pode ser seu caráter mais
evidente, como no enamoramento. O amor muda ao longo do tempo na evolução do
indivíduo e da sociedade. É um produto da transformação da infância na idade
adulta, assim como também é transformação na velhice. Essas transformações são
ainda muito misteriosas e negligenciadas na literatura. As principais variações
para o núcleo central, como já se definiu, podem depender de:
ü O
objeto (todas as formas de Eros descritas por Freud).
ü O
conflito central entre o narcisismo e a catexia de objeto.
ü A
parte mais ou menos preponderante desempenhada pelo desejo de controlar ou
dominar ou se apossar do objeto como uma possessão (identificação projetiva).
ü A
sua relação com a sublimação, mantendo em mente que a sublimação implica em um
deslocamento dos objetivos das pulsões sexuais, uma inibição de objetivos
sexuais e a escolha de objetivos culturalmente valorizados. A atração em
direção à sublimação depende da predominância da atração do objeto. Atração
irresistível pode bloquear tentativas de sublimá-lo.
ü Amor sendo oposição ao luto (David, 1971). A
felicidade no início da experiência de amor tem sua correspondência no estado
de embotamento da mente morta e de luto.
ü A
oposição entre o amor e o ódio, por um lado, e a indiferença do outro. Isto deve
ser entendido em relação ao narcisismo e, em situações extremas, a função
desobjetalisante (Green, 1999), assim como narcisismo negativo deve ser
diferenciado de ódio.
ü Amor
sendo, por assim dizer, a coroação do objeto que sobreviveu a todas as etapas da
infância para alcançar o complexo de Édipo.
Não
que eu ignore o amor pré-edipiano (Bouvet, 1967), mas é a estrutura completa do
Édipo (como descrito por Freud em O Ego e o Id, 1923) com o seu duplo aspecto
(positivo e negativo), a combinação da diferença entre os sexos e a diferença
entre as gerações, a bissexualidade, a oposição entre a ternura (o único
aspecto erótico mencionado por Freud na sua descrição do Complexo de Édipo) e
hostilidade, a complementaridade de desejo e de identificação, que são os parâmetros
essenciais do amor. Os extremos do amor são alcançados em auto-sacrifício em
prol da integridade do objeto.
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