0
Montaigne: para um sentido da História
19/abr/2016, 10h15min
Montaigne: para um sentido da História
Por Tarso Genro
Não posso falar das qualidades morais e políticas
da deputada Raquel Muniz (PSD MG), nem do seu marido, prefeito de Montes
Claros, Ruy Muniz. Como estamos assistindo vários procedimentos de “exceção”,
no campo penal, seria desleal precipitar um juízo sobre estas duas figuras, que
no seu provincianismo explícito, na hora do voto “contra a corrupção”
proferido pela deputada, viriam a se tornar -ainda que de maneira efêmera- duas
figuras nacionais. Interessa mais o símbolo político que eles constituem
-tenha ou não o Prefeito cometido os delitos que lhe imputam- do que
propriamente o episódio personalizado. Mas o episódio é emblemático, para
entendermos o que está correndo hoje no nosso amado país.
O que especialmente não se tratou nos debates da
Câmara sobre o impedimento da Presidenta foi da existência ou não de “crime de
responsabilidade”. As longas dedicatórias de voto, feitas pelos deputados
que assumiram derrubar a Presidenta Dilma, partiam, sobretudo, de uma vocação
moralizadora que os parlamentares exibiam ao país: o seu amor à
família e as suas cidades de origem. Foi um longo desfile de primitivismo
político, irresponsabilidade histórica e exibição de decadência do atual
sistema político. Ao invés do julgamento da aceitação (ou não), de que há (ou não),
crime de reponsabilidade a ser julgado pelo Senado, os deputados votavam “para
regenerar o Brasil da corrupção”, para “salvar as suas famílias” e retomar o
“crescimento e o emprego.” Tratava-se da pretensa eleição indireta de um
Presidente da República, para substituir uma Presidenta eleita diretamente. Um
atalho. Não um processo regular de “impeachment”.
Ao longo dos últimos dezoito meses, a ampla maioria
da mídia tradicional do país, de maneira dolosa, desta vez de forma sistemática
e planejada -não de maneira espontânea e desorganizada como até então-
vem incutindo na cabeça do distinto público, quatro mentiras básicas, sobre a
conjuntura política do país, aproveitando, de uma parte, a adesão do PT aos
critérios de governabilidade tradicionais da política nacional e, de outra, as
reais ou fictícias ilegalidades, cometidas por próceres ou aliados do Partido,
no contexto das disputas eleitorais. Eis as quatro mentiras básicas: o PT
corrompeu a democracia brasileira; a maioria dos políticos, especialmente do PT
e do seu campo aliado, são corruptos e venais; removendo o PT começaremos a
resolver os problemas nacionais; qualquer um, menos Dilma, é melhor para
sairmos da enrascada da crise; o PT aparelhou o Estado.
Desnecessário dizer a mentalidade de sabujice
política e de temor reverencial, que esta campanha causou num amplo espectro de
deputados -por medo de serem justa ou injustamente “julgados” pelo
oligopólio midiático ou por mero oportunismo político- promovendo a ideologia
salvacionista e farisaica, que resultou na aceitação do processo de impedimento
da presidenta Dilma. Para que isso pudesse acontecer, foi necessário que a
parte mais decomposta do PMDB -falo aqui em termos políticos- transitasse
rapidamente para “traição” e formasse, com a direita conservadora (Heráclito,
Agripino, Bolsonaro), um grande bloco em defesa da moral e dos bons costumes,
na Política, para tentar eleger Temer, de forma indireta, à Presidência da
República, a depender da posição que será assumida pelo Senado Federal.
Sobre as quatro mentiras: a corrupção no país não
foi iniciada nem aumentada pelo PT e acompanha a formação do Estado Nacional,
como ocorreu e ocorre em qualquer país; parte – apenas parte,
repito – de todos os partidos e também do PT, se integraram neste
processo e o destaque, no último período, veio de parte do PMDB, do
DEM e do PP, unidos agora para eleger Temer; remover o PT do
Governo, neste momento, pelo atalho institucional do “impeachment” forjado,
agrava os problemas nacionais, porque Temer -se confirmado pelo Senado-
terá muito menos legitimidade para governar do que a Presidenta Dilma; o PT não
só não “aparelhou” o Estado, como está sofrendo pesadamente os efeitos deste
“não aparelhamento”, pois os órgãos de controle e investigação, que sempre
foram lenientes nos Governos FHC, estão investigando e “controlando” livremente
e o fazem, com atenção especial ao PT.
Popper dizia que a história não tem sentido, mas
nada nos impede de dar a ela um sentido. Bobbio acreditava que as boas “regras
do jogo” podem orientar melhor este sentido. Marx profetizava que as
“determinações econômicas” deveriam ser entendidas para que os sujeitos
pudessem orientá-la, da melhor forma possível. Parece que a grande mídia, que
vem pautando, tanto um sentido para crise política (a culpa é do PT, de Lula,
da esquerda), que vem legitimando regras do jogo de “exceção” (com o
endeusamento explícito da jurisdição de exceção do Juiz Moro) e que vem
utilizando as determinações econômicas da crise financeira global (piorando-a
com a sua propagação interna pessimista), entendeu, na plenitude, o seu papel
dirigente: liquidar a política como espaço do contraditório democrático
racional, para oferecer aos políticos submissos ou temerosos, o papel de
sujeitos da irracionalidade autoritária.
O resultado está simbolizado pelo episódio da
deputada Raquel e do seu marido, que justa ou injustamente foram
escolhidos pelo acaso para a revelação emblemática: a partir de agora vocês não
serão mais incensados, todos os nossos esforços -está pensando a
coalização liberal-midiática- serão destinados a cortejar, orientar e modelar, Temer e seu grupo, que talvez
tenham o maior número de contas a acertar perante a nossa Justiça Penal.
Se assumir, Temer terá legitimidade zero, que só será
conseguida pelo artificialismo da criação de um país ilusório gerado pelo
Jornal Nacional, mas nas ruas, nas universidades, nas fábricas, na juventude,
no campo, junto inclusive a setores empresariais que dependem do mercado
interno e dos investimentos públicos -que será ainda mais asfixiado do que
está- é que se estará gestando o novo Brasil.
Cabe aos setores mais corajosos e racionais da
esquerda democrática do país, começarem a “concertar” um novo bloco social e
político – com um programa ousado de mudanças, no sistema político, no
funcionamento do Estado, no reforço legal e legítimo do combate à corrupção, na
democratização das decisões para compor políticas públicas, numa nova regulação
democrática da mídia, na soberania alimentar – para nos contrapormos com luz e
clareza aos momentos duros que vem por aí. Se bloquearmos o “impeachment”, a
coalizão liberal-midiática vai continuar impedindo Dilma de governar e se Temer
assumir teremos o Governo da mídia, combinado com a pior parte do que
cevamos no nosso próprio Governo. Se esta última hipótese ocorrer, precisamos
criar uma ampla maioria social e política, centrada numa única exigência comum:
eleições gerais, ainda este ano, para legitimar o poder político no Brasil e
fazer a Constituição de 88 retomar seu império sobre a vida pública.
Lembro-me de uma sentença de Montaigne, um
admirador do cotidiano, um realista sóbrio, a quem sempre procuro me reportar
em momentos de dúvida: “uma
parte da nossa vida consiste em insanidade e a outra em sabedoria”. Creio que,
neste período que vivemos, a maior parte da insanidade já foi cumprida pelos
movimentos liberais-midiáticos, que seduziram uma boa parte da nossa classe
média para uma aventura golpista. A sabedoria – em maior ou menor grau – está
em todos os lados e em todas as classes, Não é resultado da sabedoria, porém, –
se foi verdadeiro o ânimo de luta contra a corrupção que embalou certos
movimentos – deixar o Governo nas mãos dos grupos políticos mais
plenamente identificados com ela. Para o bem e para o mal, os que chegariam ao
poder com Temer, sairiam de dentro do próprio Governo impugnado. É o momento da
História em que a ironia supera a tragédia. Só uma nova eleição, nesta
hipótese, colocará novamente a nossa democracia nos trilhos.
.oOo.
Tarso Genro foi Governador do Estado do
Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da
Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Postar comentário
• Comentem as matérias, façam sugestões, elogios ou mesmo reclamações, troquem idéias, este é o lugar para opinar!
• Todo e qualquer tipo de comentário contendo ataques pessoais, expressões chulas e/ou ofensivas será sumariamente DELETADO.
• Os comentários aqui exibidos não necessariamente refletem as opiniões do Blog.
Perfil
Minha reflexão levou-me à idéia de que a política tem um motor paranóico impossibilitando juntamente com os interesses de classes a consecução pelo homem da justiça e do bem. Finalmente me caracterizo como pensador radical, sem sectarismo, para quem a sociedade capitalista contemporânea se exprime pela afanosa busca do fetiche consumista.
Seja bem vindo ao meu blog!
